Porventura não haverá conceito tão mais genérico e abrangente quanto impessoal e difícil de consensualizar como o meio ambiente (fixando a atenção na própria definição de meio ambiente da Conferência das Nações Unidas – o meio ambiente é o conjunto de componentes físicas, químicas, biológicas e sociais capazes de causar efeitos diretos e indiretos, em prazo curto ou longo, sobre os seres vivos e as atividades humanas – e descobrimos, de imediato, que a pacificação de um suporte conceitual comum e assertivo é difícil de atingir e de generalizar o seu reconhecimento…)
Se falássemos de matemática, diríamos que meio ambiente é uma operação de adição simples de duas partes: o ambiente natural e o ambiente construído. E que essa adição produz sempre resultado objetivo e estável. Todavia, não é desta ciência exata de que falamos, antes de um conceito que se molda e flexibiliza em função de contextos e tempos, espaços e pessoas. E, se este conceito meio ambiente é o cruzamento do ambiente natural e construído contextualizado no tempo e no espaço, o mesmo encontra no espaço público o seu denominador maior e de mais alta visibilidade e significado.
Entendendo-se espaço público como aquele onde a comunidade se expressa, como “um espaço de recordação comum”[1] onde “os atores constituem-se como sujeitos na medida em que articulam um espaço de lembrança e olvido, uma história que podem considerar comum…”[2] o mesmo é sujeito a diferentes visões analíticas e argumentativas, dir-se-á mesmo, ideológicas, vagueando nos seus extremos entre um conservadorismo atávico e um liberalismo desenfreado.
Dominantemente, identifica-se três visões maiores, regulares e constantes: (a) a visão ecologista numa perspetiva de que a natureza não se transforma nem se ajusta. Apenas se preserva. Talvez o que nos transporta(ou) para uma visão tão generalista e cinzenta da palavra sustentabilidade; (b) a visão economicista na convicção de que todo o espaço construído deve ser rentabilizado e autoportante, alimentando-se e dando a alimentar o próprio espaço. Porventura, fixando de forma desfasada a palavra competitividade; (c) a visão social na certeza que o espaço público, seja natural ou artificial, é palco de experimentação e contato, de conhecimento e interação, transformando seres humanos em pessoas. Acredita-se que tem presença na gênese da palavra coesão…
Estas três visões replicam-se e repetem-se, gerando variações ou radicalismos, aproximações e equilíbrios, que contribuem para uma noção de espaço público ainda tão longe de estabilização e consensualização.
Não procurando este texto responder a tão complexo desafio, o mesmo tenta descobrir pontos focais e seguros, de alguma forma, pétreos (porque constantes e sólidos ao longo do processo) que contribuam para o aprofundamento deste processo de entendimento e consolidação do espaço público.
E se o espaço público é o bem comum que se transversaliza na sociedade, desde logo, identificamos aqueles que determinam a forma e a função, a condição desse espaço: o poder político (“a política é, precisamente, uma luta pela definição do bem comum”[3], a capacidade técnica e o envolvimento social. Porque, (a) o primeiro opta e decide, determinando o caminho e sendo farol que avisa e referencia; (b) o segundo desenha e formaliza o espaço, cristalizando as ferramentas e mecanismos de auxílio; (c) o terceiro apropria-se do espaço, tornando, verdadeiramente, conta dele e dele “pessoalizando” … Na verdade, porque os três condensam interpretação, materialização e apropriação. E a harmonia que, entre os três, deve ser “cola e cimento”.
Por isso mesmo, não haverá bem comum sem poder político ciente da sua cumplicidade com o envolvimento social, sem qualidade técnica coerente com o poder político, envolvimento social sem complemento da qualidade técnica, provando-se, assim, que é no espaço público que mais e melhor se manifesta um dos sentimentos societais mais relevantes – a solidariedade – e uma das características urbanas tão mais polêmica quanto saudável e necessária – a mistura.
A rua, enquanto elemento urbano e público, de expressão democrática maior, é o rosto máximo deste espaço público, é a combinação (que se deseja) equilibrada entre solidariedade e mistura, entre o eu e o indivíduo e o nós e a comunidade (“a cidade é o instrumento da vida impessoal, o molde no qual se torna válida como experiência social a diversidade e complexidade de pessoas, interesses e gostos”[4]) e o ponto de encontro límpido desta ideia de bem comum reconhecível por toda a comunidade.
“A rua é igualmente o espaço principal da cidade. Cristaliza, portanto, desafios múltiplos. E merece uma atenção e deferências especiais por parte dos urbanistas”[5]. É, por excelência, o lugar onde a solidariedade e a mistura se cruzam e onde as visões ecologista, economicista e social se complementam e completam, talvez, encontrando, aí, o melhor dos contextos para o seu diálogo.
Lugar de coexistência de meios e atividades, de gostos e manifestações, de silêncios e discursos, a rua vive da convivência do automóvel e do peão, do autocarro e da bicicleta, do transporte pesado e da logística, expressando, tantas e regra geral, “a cidade como um espaço de individualização ao qual devemos a maior produtividade econômica e cultural, mas também cenário em que marca(ra)m encontro todas as patologias da sociedade moderna”[6] e sinalizando indelevelmente marcas perturbadoras no ambiente natural.
Mas a rua é também lugar de mistura de atividades e desafios, de gentes e negócios, de afirmação política e cultural, de manifestação artística e defesa de causas. É lugar de encontros e desencontros que permite misturar todos nós, tão iguais, tão diferentes. Não é lugar onde se arruma, antes se vive.
E esta parece ser a grande lição da rua (que, hoje, enfrenta o desafio da sua virtualização e intangibilidade em função da revolução tecnológica e relacional que nos acompanha). Reduzida, tantas vezes, a um espaço funcionalista, de circulação, articulação e acolhimento de atividades e meramente pretexto e cenário para a arquitetura (e seus edifícios), a rua é muito mais do que “predador de solo”. É uma síntese que, não se encontrando palavras tão certas, se transcreve “o regresso de um imaginário urbano no qual a urbanidade, ou seja, a adequação de um lugar e dos seus usos, decorre precisamente da mistura, da variedade, do imprevisto, do espetáculo de um espaço compósito… cidade que é, por excelência, o lugar de encontro com “o outro”: com gente, ideias, objetos, situações que o reagrupamento de “iguais” não é susceptível de oferecer. Neste contexto, as ruas multifuncionais e multissociais encontram virtudes porque são os lugares de encontro ou confrontação com o outro”[7].
Ao tornar-se elemento central no espaço público, a rua adquire uma importância relevante na vida societal e responsabiliza os atores que a constroem, gerem e usufruem com mais camadas e exigências. Num meio ambiente cada vez mais escalpelizado, monitorizado, reivindicado na sua qualidade, seja ecológica, economicista e social, a rua é fator incontornável para o seu sucesso e melhoria.
E se a mobilidade, a economia e a sociedade são temas para lá da rua, esta é suporte bastante para as três. E presença obrigatória. Para um mundo mais justo, acessível e democrático. Para um meio ambiente que transforme “a rotina de encontrar pessoas desconhecidas e em que a proximidade física coexiste com a distância social”[8] numa realidade menos arrumadora e mais arRUAdora.
Notas
[1] INNERARITY, 2006
[2] INNERARITY, 2006
[3 NORBERT ELIAS, 1998
[4] NORBERT ELIAS, 1998
[5] ASCHER, 2010
[6] INNERARITY, 2006
[7] ASCHER, 2010
[8] INNERARITY, 2006
Bibliografia
INNERARITY, DANIEL, O novo espaço público, Editorial Teorema, Lisboa, 2010 (ed. Portuguesa)
ASCHER, FRANÇOIS, Novos princípios do urbanismo. Novos compromissos urbanos. Um léxico, Livros Horizonte, lda, Lisboa, 2010 (ed. Portuguesa)